“Estudar não é consumir ideias, mas criá-las e recriá-las.”
Paulo Freire
“produzem mas não possuem,produzem mas não se apropriam e feita a obra não permanecem nela”.
Lao-Tsé
Acostumados que estamos a um pensamento bipolar, hierárquico e arborescente e a estudar sempre o todo a partir da análise e da divisão em partes, ignorámos que a vida e o conhecimento não podem reduzir-se a esse esquematismo castrador da diversidade que dicotomiza, separa e isola na crença de que sujeito observador e objecto observado são independentes entre si.
Curiosamente é na própria natureza onde podemos encontrar exemplos de que o crescimento e o desenvolvimento nunca são lineares nem obedecem necessariamente a processos reversíveis e tal é o caso do rizoma, o caule horizontal e subterrâneo daquelas plantas perenes que como a do lírio comum pode ramificar-se e permitir que uma parte desse entrançado surjam outros caules permitindo assim a multiplicação vegetativa e mesma rápida proliferação. O facto é que um rizoma é uma estrutura um tanto peculiar. Vive debaixo da terra, mas permite alimentar a planta. Vive debaixo da terra, mas permite guardar água e alimentos em tempos de seca e carência. Vive debaixo da terra e pode aparecer e desaparecer por algum tempo sem que isto lhe retire necessariamente potência para garantir o crescimento da planta.
O primeiro a aplicar o modelo botânico de rizoma às ciências humanas, e especificamente à psicologia foi Carl Jung, quando em finais de 1958 deu por terminados os três primeiros capítulos da sua conhecida obra de memórias “Memórias, Sonhos, Reflexões”, na qual afirma que a vida dos seres humanos é semelhante à das plantas com RIZOMA, enquanto que o realmente perceptível e visível é algo efémero e fugaz, ao contrário e semelhante ao RIZOMA, há sempre “algo que vive e permanece por baixo da mudança eterna. O que se vê é a flor, e esta perece. O rizoma permanece”.
Quase vinte anos mais tarde, na década de setenta do século passado, o termo rizoma voltou de novo a ser utilizado profusamente nas ciências humanas e em concreto no âmbito da epistemologia da comunicação por Gilles Deleuze e Felix Guattari, na sua também obra clássica “Rizoma: Introducción” em que se apresenta o modelo rizomático como uma estrutura de funcionamento na qual qualquer ponto pode ser conectado com qualquer outro independentemente de serem homogéneos ou heterogéneos entre si e sem seguir uma ordem hierárquica, nem de relações de ordem e/ou subordinação, nem de sequências com base em critérios, estrutura que é necessariamente flexível, múltipla, regenerativa, e portanto perene, enquanto que “… Todo o rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais está estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas também linhas de desterritorialização segundo as quais se escapa sem cessar. Há ruptura no rizoma cada vez que das linhas segmentadas surge bruscamente uma linha de fuga, que também faz parte do rizoma. Essas linhas remetem constantemente umas para as outras. Por isso nunca deve pressupor-se um dualismo ou uma dicotomia, nem sequer segundo a forma rudimentar do bem e do mal…”.
Talvez sejamos demasiado ambiciosos, mas estamos com Paulo Freire quando assinala que o que nos parece impossível para amanhã há que fazê-lo a partir do que nos é possível hoje. Em consequência, o que tratámos de fazer é um “rizoma freireano” no qual ao mesmo tempo que podemos ser raízes, caules, folhas, flores ou frutos, sem nos importarmos com a nossa posição nem com o espaço que ocupamos, possamos igualmente gerar e produzir conhecimentos a partir não somente de “linhas de segmentaridade” mas sobretudo de “linhas de desterritorialização” nas quais confrontados com a bipolaridade dominante, recriemos a complexidade emergente da vida.
Esta revista nasce portanto com vocação rizomática uma vez que a sua existência não é física, posto que se trata de uma Revista Online que estará sempre ali, oculta e visível ao mesmo tempo, unitária e múltipla, formal e informal, permitindo-nos comunicar, reflectir, discutir, entrar em conflito e chegar a acordos ou a desacordos, posto que se trata de uma estrutura aberta, que conduz a muitos lugares pela fazer, ou a nenhum se apenas quisermos ler uma revista.
Mas para além disso o nosso “rizoma freireano” não somente é rizoma pela sua virtualidade e sua estrutura, mas também pela diversidade de pessoas que nela participam e de temáticas que se abordarão, partindo precisamente dos princípios de multiplicidade e desterritorialização no sentido de fazer emergir como conhecimento legítimo, aquilo que o conhecimento académico, bancário e oficial desaprecia e invalida, dando lugar a novos pensamentos, ideias, sonhos e escritos que nos permitam reflectir sobre o mundo nas/com as pessoas; e sobre as pessoas que estão no/com o mundo.
A aproximação ao mundo, o estar no/com o mundo e contemplá-lo, criá-lo e recriá-lo – esse mundo que Freire dizia que não é, mas que está sendo – sê-lo-á numa perspectiva educativa, que não é escolar. Mas sendo educativo o enfoque, não se reduz nem se limita ao pedagógico, já que o “rizoma freireano” quer trespassar os limites da educação e observar e tomar parte nos assuntos desde outras perspectivas e posições que se encontram na fronteira entre a vida e o sonho, entre o real e o desejo, por isso, grande parte das páginas estarão cheias de utopia, sonho e realidade.
O “rizoma freireano” que desde este mesmo instante começou a tomar vida, está a ser construído por todas e todos, é uma tarefa colectiva e sobretudo um desafio para pensar e actuar no/sobre o mundo de outra forma com a única arma – instrumentos, ferramentas – que cremos ser útil: a palavra que dá forma ao pensamento e às práticas. É igualmente um desafio para pensar sobre hoje a partir do amanhã, para alimentar o nosso desejo de mudança e para aguardar esperando tempos melhores transformando, como dizia Freire, as dificuldades em possibilidades. Tempos que apenas chegarão se nós, constituídos como uma multidão geradora de novos espaços no espaço, lutarmos para que os melhores tempos cheguem e o rizoma cresça alimentado pelos saberes, as práticas, os desejos e os sonhos que aquelas e aqueles que ao terem-nos, não os têm, porque os partilham e querem vê-los feitos realidade num lugar real e concreto e num tempo real e concreto.
¿Como vamos construir este espaço? A revista terá três números anuais, e a nossa vontade de ir construindo espaços divergentes e diversos pretende que os artigos sejam publicados em quatro línguas: inglês, português, castelhano e catalão. Junto a esses artigos para pensar e reflectir, encontrar-se-á sempre um documento declaratório sobre a nossa vontade de mudar – mesmo que seja um pouco – a realidade que temos e que não gostamos. Juntamente/dentro da revista, também poderão ser encontradas informações sobre as actividades que realizam ou vão realizar as instituições comprometidas com este sonho/desejo/projecto na forma de um boletim.